Dia 1
Do lado de cá da córnea, a baía de Porto Maya é um guache marrom desfocado por uma mancha de catarata e pelo olhar nervoso de crack da prisão. Minha cela fica bem no meio do olho. Me disseram que ela se chama Padma. Aqui embaixo passa um nervo. E aqui dentro tem um poeta. Ou quase. Ou o que resta.
Me pergunto se sobra nem que seja a sombra de um verso, ou qualquer lembrança de beleza, depois que alguém, como eu, cruza a porta da Segunda Sessão e dá de cara com a mão brilhante de um animista, chircuitos forçando os chakras, expandindo o sonho à força, moldando medo e culpa em delação.
Espero que os camaradas lá fora perdoem este velho sonhador.
Primeiro dia. Meu mundo cheira a éter e plástico queimado. O cárcere bem que podia morrer de overdose.
Dia 2
A cela range e balança no embalo do tédio, pendurada num eixo que brilha, um tubo que exibe pensamentos ao vivo e vez por outra grita e nos olha todas as horas do dia. Nos olha. Todos nós, cada um em sua gaiola.
Hoje falei com Vizinho. Perguntei seu nome e ele respondeu vazio. “Tiraram meu nome, os filhos da puta. Ou então perdi. É o que acontece nessa porra”, ele disse, cabeça baixa olhando suas rodas. Eram dele mesmo, não de uma cadeira, e era pintada que nem seu corpo e sua cabeça comprida. Acho que o ouvi chorar. “O cara entra e vai perdendo o nome. E quando vai embora de vez, já era. Ninguém mais lembra, cara, nem lá fora. Tu vira mais um delírio de uma cabeça fodida de química”.
Vizinho contou o que lembrava de sua história. Disse que foi pego pela Segunda Sessão, como eu. “Caí no 9, no 17 e no 44. Pirataria de dreamware. Invasão de sonho compartilhado. Terrorismo oneiromidiático”, ele riu debochando. “Mas todo mundo jogou meu viral. E todo mundo riu deles”.
De mim, leram um verso e ouviram uns nomes. Nem era um bom verso. São bons os donos dos nomes. Rezo para que Vizinho esteja certo e me esqueçam.
Dia 3
Sei quando vira o dia não pela luz que atravessa a córnea, mas pela sirene de um trem que me acorda e despeja uma pequena multidão de três ou quatro estranhos no vazio logo acima de minha cabeça. Surge do nada e se despede no nada, o trem. Parte de uma plataforma vazia e segue por trilhos inexistentes.
São recebidos e conduzidos por pandemônios em armaduras de choro. As crianças gritam e babam e de vez em quando caem com um ruído metálico na plataforma. Vizinho disse que os detentos com bom comportamento varrem os corpos para o abismo. A brigada de limpeza. Não lembro de ter visto rebeldia.
Tive um sonho que se despediu de mim. Estava nos porões da Segunda Sessão recitando nomes, no escuro, e cada um deles era uma vespa enorme decolando de minha boca. Havia bolhas de sabão flutuando. Capturavam os insetos que depois eram conduzidos, bolhas e vespas, por um animista de dedos longos e máscara de nariz comprido. Um rosto fálico ejaculando escárnio enquanto se despedia.
Acordei tranqüilo, na certeza de que nunca mais sonharei com vespas.
Dia 4
Dois Carnavais chegaram sem anúncio ou ruído em minha cela. Uma chamei de Porcelana por algum motivo que me escapa e ela me respondeu um nome que me foge à memória. Me cumprimentou com carinho sóbrio, debaixo da máscara, e perguntou como eu estava. Dei de ombros, sem saber o que responder. Já me sinto em casa.
“Precisamos de sua ajuda uma última vez”, disse Porcelana. Eu tentei, juro que tentei, mas a imagem escapou de mim. Porcelana tocou o ar e vi mais uma vez o ambiente se tornar mosaico, girando, a prisão distorcida, um caleidoscópio que ela manipulava como uma parede de cubos-mágicos, procurando a solução para a quebra da minha cabeça.
“Encontrei”, disse o outro Carnaval, sua voz arrastada de satisfação. Ele girou um cubo para um lado, um segundo para outro lado, e foi montando a cena que traiu minha vontade. Em segundos, estávamos lá naquele palco. A metade atrás de mim era a jaula. À minha frente era a cena. “Converse com ela”, disse a máscara vermelha. Não há opção no pedido de um animista que já quebrou sua vontade.
Tomei chá com ela. Foi uma tarde maravilhosa.
Dia 1
Me declaro dono deste baú de melancolia. O achei largado junto à cama. Chamei pelo dono e não tive resposta. Procurei nas páginas e só havia um labirinto de rabiscos e formas. Sei que elas dizem alguma coisa desesperadamente triste, mas não consigo saber o quê. Então tomo para mim suas angústias e suas memórias. Me são tão familiares. É como se ver no espelho e reconhecer apenas o que foi um dia, sem conectar causa e efeito, apenas rugas no reflexo, a metade final da linha da vida.
Acho que fui devorado. Sinto que fui devorado e digerido porque sinto meu espírito flácido, minha carne menos física, meus dentes já não doem, meus dedos já não gritam. Escrevo nem sei por quê. Será que também vou deixar somente rabiscos para o próximo detento? Será que sonho que escrevo que sonho dentro de olho imenso? Será que penso ou pensam por mim?
Dia 2
Um raio de sol vazou por debaixo da cama. Piscando, como fugindo de trás de uma cortina trêmula. Um cubo do tamanho de um punho, pairando pouco acima do chão da cela. Girando rápido, dobrando a realidade, alternava seis faces e em cada face uma janela. Cheguei mais perto e toquei uma delas. Foi como uma onda de pequenos cubos: carpo, metacarpo e dedo. Punho, braço e medo. Parado, à minha frente, vi o contorno de uma baía à noite. Reconheço a paisagem de uma fonte mais borrada. Não reconheço o mundo lá fora.
Outro dia
Mais uma sirene. Mais um trem e mais um desfile de prisioneiros. Os pandemônios à frente, chegaram pelo corredor com uma mulher bonita, junto mais três ou quatro jovens com cara de guerra. Me olharam feio. Me chingaram sem adjetivo ou verbo. Cada um posto numa cela, à minha frente e ao lado dela.
A moça sentou no canto da cela, soluçando, sozinha. Rasguei uma página do diário, uma a mais, uma a menos, tem tantas folhas vazias. “Olá,” eu escrevi, “meu nome é Interno”. Amassei e joguei para ela. Quase com nojo ela jogou o papel no vazio, como faz a brigada de limpeza.
Maravilha, Jacques! Disse lá e repito cá: é uma mistura de Camp Concentration, do Tom Disch, com viagens lisérgicas Phildickianas, upgraded pro século XXI. Do caralho!! Parabéns, irmão!!!
Mas você não escapará daquela minha pergunta: o que você não gostou? 😀
Em PVT, se for o caso.
Não li o romance do Disch, mas pelo que pesquisei tem realmente pontos em comum. É sobre um poeta, preso e que escreve um diário, certo? Felizmente, a semelhança pára por aí. Ou não?:D
Pára por aí, porque ele só começa a delirar na segunda metade da história. Os delírios dele são devido a uma droga que o torna hiperinteligente. No seu caso, a impressão que me deu foi que há uma “infecção” de wetware (pela via do dreamware, por exemplo) e fode com o cara. Mas não ficou claro (e eu acho isso ótimo) se é só com o Vizinho ou com o narrador também.
Fico feliz de ter sido claro na ambigüidade. 🙂
Onírico pra cacete! Queria ter visto ele na voz, com as imagens Pechando no fundo. Saco!
Abração,
R.
Fala, Richard. Bom que tu gostou! Lá no PKN eu dei um errinho na sincronia com as imagens, mas acho que não chegou a comprometer.
Legal, Jacques. Me senti dentro de um liquidificador. Muito louco.
Valeu, Tibor.;)
gostei também, jacques.
minha viagem foi:
+ a cadeia como extensão (mcluhiana) do homem
+ locked-In syndrome (http://en.wikipedia.org/wiki/Locked-In_syndrome)
abs
kuja
Que bom que gostou, Kuja. E sim, tem um pouco a ver com locked-in syndrome.
Oi, Jacques, foi legal te conhecer no PKN. Dei uma olhada no blog e curti bastante.
Eu falei um pouco da Terra Incógnita no meu, dê um pulo lá para conferir:
http://www.ivanhegenberg.blogspot.com
Como te disse pessoalmente, adorei as imagens que vocÊ criou.
Jacques, ainda bem que você postou o texto aqui… 🙂
Na noite da apresentação perdi vários trechos da leitura, seduzido pela sonoridade e pelos retratos que as palavras pintavam em minha mente, até parecia que era eu quem estava mergulhando em águas lisérgicas… 🙂
Muito bom o texto… e parabéns pela apresentação…
Ivan, também foi bom te conhecer. Seja bem vindo ao Human 2.0.
Ana: muito obrigado.
Aguinaldo: obrigado por ter assistido. Imaginei que as pessoas iam perder um bocado do texto. Felizmente, deu pra dar uma boa impressão suficiente pra você chegar até aqui e me presentear com sua atenção de novo. 🙂
O lance da síndrome do encarceramento fez todo sentido pra mim. Esse recorte torna a narrativa mais densa e coerente. E as imagens mais bonitas.
🙂
O meu nome é Interno… só muda a cela. A minha é de compensado de madeira e minha vista são alguns empresariais e poucos residenciais. Inveja do senhor que dorme na rede da sua varanda todo dia depois do almoço.
parabéns pelo conto Jack!
Se serve de consolo, eu não tenho varanda.:(
Mas que bom que gostou, Renato.:)
Do caralho! Porra. Que estilo do caramba, não tinha conseguido sacar toda a poesia durante o PKN, imagem, história, ritmo, voz, tudo misturado e você acaba perdendo algumas coisas. Vi ecos do Piritas, no uso que você faz da linguagem, é um prazer de ler teu texto, Jacques. Bom pra caramba!
O.o
Cacete…obrigado, Trevisa. Fico muito feliz por você ter gostado.:)
Trata-se de uma caleidoscopoética. Muito, mas MUITO bom. Mesmo. Adorei.
Putz…obrigado, Octa. Fico muito feliz que você gostou.
E gosti do caleidoscopoética…:D