Meu nome é interno
por
Jacques Barcia
Dia 1
Do lado de cá da córnea, a baía de Porto Maya é um guache marrom desfocado por uma mancha de catarata e pelo olhar nervoso de crack da prisão. Minha cela fica bem no meio do olho. Me disseram que ela se chama Padma. Aqui embaixo passa um nervo. E aqui dentro tem um poeta. Ou quase. Ou o que resta.
Me pergunto se sobra nem que seja a sombra de um verso, ou qualquer lembrança de beleza, depois que alguém, como eu, cruza a porta da Segunda Sessão e dá de cara com a mão brilhante de um animista, chircuitos forçando os chakras, expandindo o sonho à força, moldando medo e culpa em delação.
Espero que os camaradas lá fora perdoem este velho sonhador.
Primeiro dia. Meu mundo cheira a éter e plástico queimado. O cárcere bem que podia morrer de overdose.
Dia 2
A cela range e balança no embalo do tédio, pendurada num eixo que brilha, um tubo que exibe pensamentos ao vivo e vez por outra grita e nos olha todas as horas do dia. Nos olha. Todos nós, cada um em sua gaiola.
Hoje falei com Vizinho. Perguntei seu nome e ele respondeu vazio. “Tiraram meu nome, os filhos da puta. Ou então perdi. É o que acontece nessa porra”, ele disse, cabeça baixa olhando suas rodas. Eram dele mesmo, não de uma cadeira, e era pintada que nem seu corpo e sua cabeça comprida. Acho que o ouvi chorar. “O cara entra e vai perdendo o nome. E quando vai embora de vez, já era. Ninguém mais lembra, cara, nem lá fora. Tu vira mais um delírio de uma cabeça fodida de química”.
Vizinho contou o que lembrava de sua história. Disse que foi pego pela Segunda Sessão, como eu. “Caí no 9, no 17 e no 44. Pirataria de dreamware. Invasão de sonho compartilhado. Terrorismo oneiromidiático”, ele riu debochando. “Mas todo mundo jogou meu viral. E todo mundo riu deles”.
De mim, leram um verso e ouviram uns nomes. Nem era um bom verso. São bons os donos dos nomes. Rezo para que Vizinho esteja certo e me esqueçam.
Dia 3
Sei quando vira o dia não pela luz que atravessa a córnea, mas pela sirene de um trem que me acorda e despeja uma pequena multidão de três ou quatro estranhos no vazio logo acima de minha cabeça. Surge do nada e se despede no nada, o trem. Parte de uma plataforma vazia e segue por trilhos inexistentes.
São recebidos e conduzidos por pandemônios em armaduras de choro. As crianças gritam e babam e de vez em quando caem com um ruído metálico na plataforma. Vizinho disse que os detentos com bom comportamento varrem os corpos para o abismo. A brigada de limpeza. Não lembro de ter visto rebeldia.
Tive um sonho que se despediu de mim. Estava nos porões da Segunda Sessão recitando nomes, no escuro, e cada um deles era uma vespa enorme decolando de minha boca. Havia bolhas de sabão flutuando. Capturavam os insetos que depois eram conduzidos, bolhas e vespas, por um animista de dedos longos e máscara de nariz comprido. Um rosto fálico ejaculando escárnio enquanto se despedia.
Acordei tranqüilo, na certeza de que nunca mais sonharei com vespas.
Dia 4
Dois Carnavais chegaram sem anúncio ou ruído em minha cela. Uma chamei de Porcelana por algum motivo que me escapa e ela me respondeu um nome que me foge à memória. Me cumprimentou com carinho sóbrio, debaixo da máscara, e perguntou como eu estava. Dei de ombros, sem saber o que responder. Já me sinto em casa.
“Precisamos de sua ajuda uma última vez”, disse Porcelana. Eu tentei, juro que tentei, mas a imagem escapou de mim. Porcelana tocou o ar e vi mais uma vez o ambiente se tornar mosaico, girando, a prisão distorcida, um caleidoscópio que ela manipulava como uma parede de cubos-mágicos, procurando a solução para a quebra da minha cabeça.
“Encontrei”, disse o outro Carnaval, sua voz arrastada de satisfação. Ele girou um cubo para um lado, um segundo para outro lado, e foi montando a cena que traiu minha vontade. Em segundos, estávamos lá naquele palco. A metade atrás de mim era a jaula. À minha frente era a cena. “Converse com ela”, disse a máscara vermelha. Não há opção no pedido de um animista que já quebrou sua vontade.
Tomei chá com ela. Foi uma tarde maravilhosa.
Dia 1
Me declaro dono deste baú de melancolia. O achei largado junto à cama. Chamei pelo dono e não tive resposta. Procurei nas páginas e só havia um labirinto de rabiscos e formas. Sei que elas dizem alguma coisa desesperadamente triste, mas não consigo saber o quê. Então tomo para mim suas angústias e suas memórias. Me são tão familiares. É como se ver no espelho e reconhecer apenas o que foi um dia, sem conectar causa e efeito, apenas rugas no reflexo, a metade final da linha da vida.
Acho que fui devorado. Sinto que fui devorado e digerido porque sinto meu espírito flácido, minha carne menos física, meus dentes já não doem, meus dedos já não gritam. Escrevo nem sei por quê. Será que também vou deixar somente rabiscos para o próximo detento? Será que sonho que escrevo que sonho dentro de olho imenso? Será que penso ou pensam por mim?
Dia 2
Um raio de sol vazou por debaixo da cama. Piscando, como fugindo de trás de uma cortina trêmula. Um cubo do tamanho de um punho, pairando pouco acima do chão da cela. Girando rápido, dobrando a realidade, alternava seis faces e em cada face uma janela. Cheguei mais perto e toquei uma delas. Foi como uma onda de pequenos cubos: carpo, metacarpo e dedo. Punho, braço e medo. Parado, à minha frente, vi o contorno de uma baía à noite. Reconheço a paisagem de uma fonte mais borrada. Não reconheço o mundo lá fora.
Outro dia
Mais uma sirene. Mais um trem e mais um desfile de prisioneiros. Os pandemônios à frente, chegaram pelo corredor com uma mulher bonita, junto mais três ou quatro jovens com cara de guerra. Me olharam feio. Me chingaram sem adjetivo ou verbo. Cada um posto numa cela, à minha frente e ao lado dela.
A moça sentou no canto da cela, soluçando, sozinha. Rasguei uma página do diário, uma a mais, uma a menos, tem tantas folhas vazias. “Olá,” eu escrevi, “meu nome é Interno”. Amassei e joguei para ela. Quase com nojo ela jogou o papel no vazio, como faz a brigada de limpeza.
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