Vidas paralelas, tempos paralelos, universos paralelos. E um só país. Ou não. Em Brasyl, o escritor escocês irlandês Ian McDonald abre uma janela para três paisagens distintas: uma futurista, reminiscente da tradição cyberpunk; outra contemporânea, um eco dos noticiários e da febre dos reality shows; e, por fim, uma no passado, em uma selva misteriosa e predadora, um mundo independente dentro de uma colônia. Ligando esses três universos tão distantes e, ao mesmo tempo tão próximos, a física quântica, suas possibilidades e suas conseqüências.
O livro conta a história de três personagens separados pelo tempo e pelo espaço. No Rio de Janeiro de 2006, Marcelina Hoffman é uma produtora de TV especializada em reality shows à procura de Barbosa, o goleiro da seleção na fatídica final de 1950, quando o Brasil perdeu para o Uruguai em pleno Maracanã. Na São Paulo ultra vigiada de 2032, o empresário e malandro Edson Jesus Oliveira de Freitas tem sua vida virada de cabeça para baixo depois que se vê envolvido com uma garota, membro de uma gangue de quantumeiros, físicos que usam computação quântica ilegal para quebrar todo tipo de código. Já na Amazônia de 1732, o padre Jesuíta Luís Quinn caça, em nome da Igreja e da Coroa Portuguesa, um outro padre que estaria criando sua própria teocracia no coração da selva. E em meio a tudo isso, duas conspirações que atravessam a parede entre as realidades: uma tenta manter o segredo do multiverso, enquanto outra tenta escancarar as realidades como único meio de salvá-las.
Mas Brasyl é bem mais que isso. É um livro que faz jus ao título que a Ficção Científica conquistou: a de última representante da literatura de idéias. E justamente por isso, Brasyl não é um livro fácil, muito menos um livro de Ficção Científica convencional.
No livro, McDonald constrói, nas três linhas narrativas, três discussões: a quantidade de vidas que um único indivíduo pode comportar, a quantidade de paisagens e sociedades que um país pode ter e, finalmente, o número de mundos diferentes cabem no universo. É um passeio, do micro ao macrocosmo, sobre a natureza da identidade. É um livro sobre filosofia, física e a natureza da realidade. Sobre escolhas, segredos e máscaras. É um livro sobre um país que nunca foi e talvez nunca será. Sobre realidades paralelas, mas focado nas suas semelhanças, não nas diferenças.
Em última instância, Brasyl não é nem mesmo um livro, mas vários, dentro de um tomo único de quase 400 páginas. Isso porque McDonald deixou escrito, nas entrelinhas, que poderia ter feito vários livros com a mesma premissa, os mesmos elementos e os mesmos personagens. Brasyl poderia ter sido um livro sobre intriga interdimensional. Poderia ter sido um livro de ação, com capoeiristas, troca de tiros e lutas de espada. Poderia ter sido um épico na selva. Poderia ter sido um livro sobre o futuro de um país dominado por telenovelas e reality shows policiais, controlado por um sistema de vigilância que monitora, da estratosfera, cada pessoa, cada objeto. Não que não haja todos esses elementos no livro que Mcdonald escreveu. Há cenas de luta em que a capoeira é descrita em toda sua beleza, uma versão afrodescendente dos filmes de Hong Kong. Há batalhas de espada, tanto na tradição cavalheiresca do século XVIII, até a do futuro, com as Q-Blades, lâminas capazes de cortar em nível quântico.
Mas ao invés disso, McDonald resolveu passar a maior parte do tempo escrevendo sobre três personagens e suas realidades paralelas individuais: uma loira que é também capoeirista e tenta se manter bonita para ser um pouco mais feliz, ao mesmo tempo que mantém um caso com um colega sem saber se sente amor; um padre, que ao mesmo tempo é um assassino e um general; e um homem que de dia é empresário, apaixonado por uma nissei, de noite é travesti, uma rainha de baile funk e, nos fins de semana, é um super-herói, um fetiche homoerótico.
E McDonald conta essas histórias usando uma prosa especial, poética e labiríntica. O vai e vem de pontos de vista, tanto entre os três protagonistas, quanto a mudança no olhar interno de cada uma delas, suas memórias e suas vidas múltiplas, muitas vezes salta várias entre cenas diferentes em um mesmo parágrafo. Essa estrutura que McDonald usa em Brasyl complementa a idéia de realidades paralelas e é a marca de um autor que tem o controle sobre seu livro.
Através de três protagonistas críveis e empáticos, McDonald explora ainda a natureza do brasileiro. Mesmo sem ter morado no Brasil, fazendo sua pesquisa com um par de visitas a São Paulo, Bahia e Amazônia, e lendo os poucos livros sobre o País disponíveis em inglês, McDonald conseguiu captar com um grau de precisão impressionante o espírito tupiniquim. E fez isso sem clichês, sem bundalelê, mas com obrervações críticas sobre a importância que o brasileiro dá à beleza, ao futebol e à televisão. Além disso, geograficamente está tudo certo e lingüisticamente está melhor do que a maioria dos estrangeiros tentando a língua de Camões.
O autor mistura o seu inglês com vários termos em português, o que causa um efeito de estranheza positiva muito mais interessante nos seus conterrâneos, mas que aqui se transforma no único real defeito do livro. Há uma boa quantidade de erros de grafia: cedilhas inexistentes, acentos deslocados e algumas traduções imprecisas. Mas algo que, absolutamente, não tira o brilho e a importância do livro.
Um feito e tanto para um gringo, definitivamente Brasyl é um livro que os brasileiros precisam ler.
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